Entre as riquezas culturais de uma cidade estão também as lendas, os 'causos' populares, transmitidos de pessoa a pessoa, de geração em geração, e que muitas vezes acabam perdidos no tempo, sem registro, sem identificação. Essas histórias, sejam verdadeiras, sejam fruto de ficção ou uma mescla de fatos verdadeiros e fictícios (afinal, quem conta um conto aumenta um ponto...), dão colorido e personalidade ao local de onde se originam.
Santa Bárbara tem seus 'causos' também - um deles é frequentemente mencionado quando algo negativo acontece. Por exemplo, negócios que não vingam, atrasos no progresso, falências, e outros mais. Se deu errado, é por conta da praga do padre!
Afinal, qual é a praga do padre? Conheço duas histórias, que transcrevo abaixo.
A praga do padre, por Nelson Sartori
Esta história foi contada a mim e a minha irmã Tere pelo Nelson Sartori - a quem agradeço pela oportunidade - que a ouviu de seu pai. O texto segue abaixo, transcrito do video do 'causo' contado pelo próprio Nelson.
Nelson Sartori Clique para ver o vídeo "A praga do padre" (1) |
Consta que, ali na esquina onde hoje é o Banco do Brasil, foi montado um circo. Com certeza devia ser um circo pequeno, porque naquele tempo Santa Bárbara devia ter quantos habitantes? Bem, e na inauguração foram convidadas as autoridades, o chefe da estação, o chefe do acendedor de lampião, o delegado, o prefeito, devia ter interventor, e o padre da cidade, o pároco.
Muito bem, começou o espetáculo. Quando foi para abrir a sessão do trapézio, as meninas apareceram no picadeiro, no palco, com um maiô da época - devia ser lá pelo joelho, né? Então, e o padre chiou, não aceitou, achou que era um escândalo, por que aquilo era desagradável. Então o dono do circo veio, conversou com o padre e falou: - Olha, se o senhor não se sente bem, o senhor tem liberdade prá sair, não tem importância. Eu não vou me ofender por causa disso, eu respeito a sua opinião.
Então tumultuou tanto no circo como lá fora, o pessoal que esperava o meio tempo, por que depois da metade do espetáculo o pessoal entrava de graça. Aí tumultuou e o padre chegou nesse grupo de jovens e alguém deve ter ofendido o padre. Já o padre falou: - O lugar de vocês é junto com seus pais, por que não é hora de vocês estarem na rua. Mais ou menos por ai. Aí um dos moços acertou um pé-de-ouvido no padre com a costa da mão, derrubando-o. Me desculpa, eu sei o nome da família, que meu pai falava, mas eu não posso falar. Os familiares estão por aí ainda - fica desagradável.
E o padre caiu, daí levantou, e ele voltou a discutir: - Local de padre é na igreja, aqui não tem nada que ver com esta festa, esta festa é nossa. Qualquer coisa nesse sentido.
Muito bem, o padre foi embora. No outro dia bem cedo, ele chamou a diligência e o cocheiro da diligência era o Sr. Belchior, sogro do Sr. Didi Machado, que naquele tempo devia ser moço também. E acertou a viagem para Americana, que ele foi para Americana - naquele tempo Vila Americana - pegar o primeiro trem para Campinas.
E ao sair de Santa Bárbara pela estrada velha, que passava por baixo daquele pontilhão ali na Vila Godoi - não existia a Avenida Santa Bárbara aqui na Vila Godoi, era lá no pátio do trem onde hoje é o Jardim Paulista. Passou por ali, fez a curva ali do lado, tem até uma santa cruz em cima do barranco (eu também sei a história dessa santa cruz) e fazia uma primeira curva à esquerda, e lá (hoje ali é o trevão do São Francisco) dava prá ver a cidade, que devia ser da Rua Riachuelo até a Duque de Caxias - quatro ruazinhas - alí ele mandou parar a diligência e olhando para a cidade ele falou para o cocheiro: - Enquanto existir uma pessoa desta geração nesta cidade ela não vai ir prá frente.
Praça de Santa Bárbara em 1917 (2) |
Agora, não estamos conseguindo esses registros: o Angolini já procurou, eu procurei, talvez numa das paróquias em Campinas esse padre se apresentou. E qual a história que ele contou? Aí está, um desconhecido, não estamos conseguindo confirmar."
A praça principal da cidade hoje (Foto: Bete Padoveze - setembro 2012) |
A mesma história em duas versões
"Em 1913, uma grande tragédia marcou a história do Município de Santa Bárbara, (ainda não era d'Oeste). Uma história tétrica e verídica, contada de pai para filho, desde aquele tempo, passando a ser considerada quase uma lenda.
Foi em 17 de julho daquele ano, que nosso delegado, Sebastião Benedicto do Amaral, foi acionado para prender dois irmãos, João e José Corrêa Rapozo, que tinham roubado dois cavalos na região e que estavam perto da cidade. Foi próximo ao Córrego Araçariguama, local em que hoje, conta com a ponte, ao lado da cadeia pública. Nosso delegado (cargo ocupado por indicação devido à sua conduta honesta) foi dar voz de prisão aos larápios e, possivelmente, após alguma discussão, foi morto com um tiro, a sangue frio. Seu irmão, Benedito do Amaral, que o acompanhava, também foi alvejado, com um tiro na perna.
Os bandidos, de posse dos cavalos roubados, seguiram em direção ao Bairro Santo António do Sapezeiro, por uma antiga estrada que passava pela Represa da Água Branca e, cortando sítios, procuraram atingir a casa de uns parentes que moravam, conforme relatos, depois do grande vale, a alguns quilómetros da Capela de Santo António.
Bairro Santo Antonio do Sapezeiro em 1992 (Foto: Roberto Schwarzenbeck (4) |
Àquela altura, os fugitivos, seguindo a velha estrada, acabaram dando em uma cerca, no sítio dos Godoy, pois a estrada para o Bairro Santo António, tinha um novo traçado. Não tendo tempo para pensar, os irmãos abandonaram os animais e seguiram a pé, embrenhando-se mata a dentro mas, ao passar em frente a casa do Sr. Francisco Egídio de Godoy, foram vistos por sua esposa Maria Vicentim de Godoy que, naquele momento, amamentava o filho António de Godoy. Percorreram, ainda, alguns quilômetros a pé, até que encontraram um grande vale, onde ficaram escondidos, a grande profundidade, protegidos por um grande tronco de peroba, dificultando o acesso dos seus perseguidores.
Horas mais tarde, chegaram os voluntários recrutados, revoltados e armados até os dentes, muitos tiros foram trocados, mas o grande tronco de árvore protegia os foragidos. Foi então que Francisco Egídio de Godoy - "Nené", inspetor de quarteirão, considerado uma autoridade no Bairro Santo António, conseguiu manter contato com os fugitivos, prometendo-lhes proteção.
Os infratores acabaram se entregando, saindo do grande buraco, ficando cercados pela população enfurecida. Próximo à estrada que divide os sítios, perto de uma árvore de peroba, conforme relatos, Albert Anderson, da Fazenda São Luiz, atira em um dos irmãos e, a partir daí, a grande tragédia aconteceu. Como um dos irmãos ainda relutava em viver, Leonardo com uma foice,num duro golpe, separa a cabeça do corpo.
Muitas histórias ainda hoje são contadas, pois os corpos vieram para cidade, em uma carroça seguida pela multidão vitoriosa, "exibindo o troféu", como vingança pela morte do estimado cidadão, Sebastião Benedicto do Amaral. Conforme muitos testemunhos, passaram pelas ruas oferecendo a carne humana para venda.
É claro que pode não ter sido tão "aviltante" como descrito mas, é certo, que toda população estava eufórica com a vitória sobre os bandidos.
Sebastião, que fora elevado ao cargo de delegado e, covardemente, morto no cumprimento de seu dever, foi sepultado em nosso Campo Santo, na sepultura n° 116, da quadra I, sendo considerado um dos grandes vultos de nossa história.
João e José eram filhos de João Rapozo, e foram sepultados, em nosso cemitério, com os registros 419 e 420. A reportagem esteve no cemitério central, mas não conseguiu localizar os registros.
Muitos anos depois, o sr. Santiro Azanha, ao retirar o grande tronco de peroba, encontrou o revólver em adiantado estado de decomposição.
Depoimentos: Naor Azanha e Família Godoy. Fonte: Fundação Romi - Arquivo Historico - António Carlos Angolini
Outra versão da mesma história
Paulo Sérgio dos Santos, neto de Benedito Soares dos Santos, falou que o seu avô, que faleceu com mais de 100 anos, contava a história da morte dos jovens: "Eu lembro que o meu avô dizia que os jovens não tinham roubado os cavalos e eram sim tropeiros, que conduziam tropa e vendiam cavalos".
Segundo Paulo, pelas lembranças que tem, que foram contadas pelo seu avô, a confusão começou em um armazém na Rua XV de Novembro, que reunia pessoas que aguardavam para carregar ou descarregar carga dos vagões da "maquininha" da Usina, que ficavam guardadas na Casa da Laranja, perto do cemitério central. Ele disse que, antigamente, havia o "costume" de quando a pessoa chegava em um estabelecimento deveria oferecer a bebida aos outros, mas diz que os jovens ignoraram essa prática e a confusão começou no local.
Pelos relatos de seu avô, de acordo com Paulo, os jovens foram até o armazém para comprar pão com mortadela para fazer um lanche e retornar onde estava a tropa, próximo da cadeia, mas daí houve a confusão, que culminou com a tragédia. Ele falou que não sabe dizer se o seu avô esteve envolvido na história, mas que ele deve ter visto e contava detalhes. "Há controvérsias na história de ladrões de cavalo", disse.
Questionado se o seu avô contava sobre a praga do padre e se tinha ocorrido depois da morte dos jovens na cidade, segundo Paulo, o seu avô falava que era verdade, mas que aconteceu bem depois dessa história e que o motivo tinha sido que o sacerdote foi acusado de calúnia e não tinha nenhuma ligação com a tragédia dos jovens. Os relatos dizem que o padre para lá da antiga Fonte Conceição, na subida para Americana, bateu a sua batina e sandálias dizendo que daqui não queria levar nem o pó."
Bem, se há veracidade nesses acontecimentos e se realmente houve uma praga lançada por um padre contra o progresso de nossa cidade, é difícil comprovar. O fato é que a praga do padre é muitas vezes usada como justificativa. Pelo sim, pelo não, em junho de 2007 a Paróquia de Santa Bárbara realizou um evento religioso de 7 dias e 7 noites, que reuniu cerca de 1.500 pessoas, chamado "Cerco de Jericó", com o objetivo de quebrar muralhas, entre elas a da praga do padre. (5)
Eis aí a minha contribuição para os anais do folclore barbarense. Você pode até questionar se essa é uma 'razão para amar SBO'. Sim, é! Não a praga, obviamente. Mas a manutenção da memória dos nossos contos, folclore, personagens, momentos, que, de alguma forma, marcaram o passado, explicam o presente e servirão de orientação para o futuro. História não compreende apenas o registro de fatos em livros, mas aquilo que permanece na memória do seu povo.
(1) Música no vídeo: "Cidade Adormecida", de Beto di Franco e Mingo Santana, do álbum "Desde Menino", de Beto di Franco
(2) Foto extraída do site da Câmara Municipal de Santa Bárbara d'Oeste (3) Consulta à edição do jornal pelo Banco de Dados do Cedoc da Fundação Romi
(4) Foto extraída do site da Fundação Romi
(5) Jornal "Diário", ed. 24/06/07
Série: 50 razões para amar SBO
Muito interessante! Eu não conhecia estas histórias.
ResponderExcluirQue ótimo poder registrá-las e manter viva a memória do povo.
Uma curiosidade: a praga afeta só a cidade ou também os cidadãos? Por exemplo, os naturais da cidade que estão morando fora...também são atingidos?...Era bom a gente saber para tomar alguma providência...
Bem, em principio a praga terminaria com a geração da época em que o fato ocorreu, mas pelo jeito ainda continua perseguindo os descendentes... Prá nossa tranquilidade, os Padovezes vieram para SBO muito tempo depois.
ResponderExcluir