sexta-feira, abril 14, 2006

Doce saudade



Essa chuva fininha, esse cheiro de verde molhado, esse som dos pingos no telhado, despertou doces lembranças, trouxe um perfume, um sabor quase esquecido de dias felizes.

Horto Tupi, Piracicaba, 2002
É engraçado como essa saudade, acordada assim de repente, não dói. Creio que é porque retorna momentos intensamente aproveitados e dos quais não sobrou nenhum instante de arrependimento. Coisas que a gente viu, sentiu, viveu e que nos fizeram felizes.

Tem um gosto doce, esta saudade. Tem o mesmo cheiro puro dos dias que revive. Da chuva escorrendo nos vidros dos carros, das canções, das flores colhidas nos jardins, dos tombos na rua, das enxurradas. Sensações que o tempo não devolve, pois seria preciso nascer de novo para senti-las com a mesma pureza, com o mesmo sabor.


Trilhos Fepasa SBO, 2007

Um desses dias foi especial. Eu tinha dezesseis anos, tinha perdido o namorado e estava me sentindo muito triste. Por ocasião de um feriado, meu pai resolveu que iríamos pescar, como ele gostava de fazer sempre. Nós tínhamos um carro novo, desses que exalam cheirinho de coisa nova, que era nosso orgulho.

Os dias que antecederam o feriado foram de euforia e expectativa, como sempre. Gostávamos desses passeios e nos preparávamos com ansiedade.

No dia combinado, acordamos muito cedo para arrumar as coisas de que precisávamos. Já aí começava a festa. Prontos, instalamo-nos no carro: meu pai, minha mãe, quatro irmãos e eu, num fusca. Nem saímos da garagem e começou a chover. Meu pai parou e perguntou:

- Vamos assim mesmo ou ficamos?

Todos foram unânimes: fomos. E o que rimos, cantamos e brincamos superou a alegria dos demais passeios. Era gostoso ver a chuva fininha e a gente lá dentro, apertadinhos, aquecidos, unidos. Às vezes me dava um aperto no peito, quando me lembrava dele. Mas passava logo, logo.


Estrada volta Rio das Pedras, julho 2010
Chegamos ao local: descemos o barranco e ficamos o dia todo debaixo da ponte, pescando, apesar da chuva. Tínhamos pouco espaço a explorar e, por isso mesmo, dávamos mais atenção um ao outro. Não me lembro de nenhuma rusga, de nenhum momento negativo. Lembro, sim, que a volta foi deliciosa e chegamos em casa leves, felizes.

Alguns dias depois roubaram nosso carro. Isso nos trouxe dificuldades, mas passaram também.

Meu namorado também não voltou. Mas ficou a lembrança dele. Doce como esses dias de chuva...

Texto: Bete Padoveze (07.10.82)
Fotos: Bete Padoveze


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