segunda-feira, outubro 23, 2006

Segunda-feira


É segunda-feira, 8 horas da manhã, e tento cumprir a minha primeira boa resolução de início de férias – caminhar (quanto tempo isso vai durar? Talvez alguns dias, como todas as boas e saudáveis resoluções). As ruas ainda não acordaram totalmente, mas já se ouvem aqui e ali os ruídos da semana que se abre. Tudo parece novo por que há muitos anos não tenho essa chance de caminhar numa segunda-feira comum, enquanto todas as pessoas trabalham e eu não.

Busto de Dona Margarida - Praça Central
Enquanto vou cruzando as ruas, o ritmo dos meus passos acompanha o ritmo das pessoas e das coisas acontecendo. Portas que se abrem, gente varrendo lojas, calçadas, enchendo as vitrinas, mostrando ofertas, padarias exalando o maravilhoso aroma de pão, bares cheirando a café e pastéis. O ruído cresce devagar, gradualmente, mas em poucos minutos começa a invasão dos empregados das lojas. Os ônibus despejam uma multidão de gente, já em seus uniformes de trabalho; os carros já se mostram impacientes, e em menos de meia hora a cidade já ganha movimento.

Praça Central
O passar por uma escola sopra uma onda de nostalgia (há décadas não vejo uma cena com crianças em uma aula de educação física!). Esqueço que minha prioridade é manter o ritmo das passadas e começo a olhar tudo como se nunca estivesse estado aqui, ou melhor, como se estivesse ausente da minha própria cidade por anos.

Escola Gabriel de Oliveira
É engraçado como, aprisionados pela rotina do trabalho e dos horários, vamos deixando a vida acontecer e quando prestamos atenção quase não a reconhecemos – a cidade, as pessoas, a vida, não parecem a nossa – e ela nos surpreende trazendo sons, cheiros e cores que parecem diferentes.

A vida acontece – já dizia John Lennon – enquanto fazemos planos. A vida acontece sem que tenhamos tempo de viver o melhor dela. Se me perguntarem qual o melhor momento da minha vida, por certo irei vou imediatamente lembrar dos grandes momentos, das grandes felicidades. Mas ao sentir os aromas e os ruídos de momentos comuns, muitos deles raros para mim, como sentir o cheiro da comida sendo preparada nas casas enquanto você caminha na calçada, os ruídos do início do dia, o silêncio do fim do dia quando você volta para casa, o vento leve brincando de dar prazer aos seus cabelos, à sua pele, aí, sim, a vida parece ser um grande momento!

Fotos: Bete Padoveze - setembro 2012.
 

segunda-feira, setembro 18, 2006

Capela de São Pedro de Monte Alegre


Em Piracicaba, arte e história desconhecidas - Os afrescos perdidos de Volpi

Com o interesse despertado pela reportagem publicada no Caderno 2 do Estado de São Paulo em 11 de agosto de 2001 e após um contato telefônico om o Sr. Wilson Guidotti, um dos atuais proprietários, fomos visitar a Capela de São Pedro de Monte Alegre, em Piracicaba, no último domingo de janeiro.



Tomando o caminho ao lado da ESALQ, avançamos um pouco além da fábrica existente no local e já na entrada da Vila Monte Alegre pudemos ver a capela no alto da colina. Embora informados de que estaria aberta aos visitantes todos os últimos domingos do mês, a capela estava fechada. Conversando com algumas pessoas da vila, chegamos ao nome do Sr. Pedro Bocatto, um dos responsáveis pela visitação, que nos indicou a casa de Da. Inês, que, muito gentilmente e já habituada aos visitantes, abriu-nos a capela.

Tanto exteriormente como interiormente, ela pouco tem da ideia que fazíamos de uma capela de usina açucareira. É mais que isso - é uma pequena igreja, que contém 600 metros quadrados de pintura, obra de Alfredo Volpi, um dos mais importantes pintores modernistas brasileiros. 

A capela foi construída pelo usineiro Pedro Morganti a pedido de um de seus empregados, para que os imigrantes italianos e os empregados da usina pudessem rezar, e foi inaugurada em 1937 para o batismo de uma de suas filhas. Pedro Morganti, interessado em arte e sentindo nostalgia da Itália, encomendou uma réplica da igreja existente em Siena, sua terra natal, que data do ano 1100, aproximadamente. 

Para a decoração, optou por Alfredo Volpi, que trouxe consigo Mário Zanini, entre outros, para executar o trabalho. Com a decadência das usinas de açúcar, Pedro Morganti perdeu as terras, o engenho fechou - apenas algumas antigas construções ainda existem - e a capela acabou sendo vendida.

Somente há dez anos a comunidade piracicabana reconheceu a sua importância histórica e em 1991 ela foi tombada pelo Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Artístico e Cultural de Piracicaba. Também a pequena vila italiana do século 19, a 200 metros da capela, foi tombada recentemente.

Conforme Da. Inês, a capela recebe visitantes com frequência, inclusive do exterior. O cineasta brasileiro Ugo Giorgetti visitou a capela e, encantado, decidiu fazer um documentário sobre sua história. 

Tão logo Da. Inês abriu-nos as portas para a visita, outros dois visitantes chegaram. Já quase à saída, também chegou um casal de São Paulo, motivados pela mesma reportagem do jornal, e cujo pai, artista plástico, foi amigo de Alfredo Volpi. Além de recepcionar os visitantes e contar-lhes a estória da igrejinha, os moradores da Vila, organizados em um grupo responsável, promovem anualmente uma festa junina, que atrai muita gente das proximidades.

A bela capela da Vila Monte Alegre não é apenas um pedaço de história e arte praticamente desconhecidos em nossa região. É, surpreendentemente, a maior obra de Alfredo Volpi, que não consta do catálogo de sua obra, não era citada em suas entrevistas e tampouco foi tombada pelo patrimônio estadual. Quem a visitar, porém, e conhecer sua história, certamente se encantará com os afrescos, com os altares, com a cúpula restaurada, que representam um pouco da grandeza das usinas açucareiras do início do século XX.

Fotos: Bete Padoveze (janeiro2002)

quinta-feira, agosto 31, 2006

Por que terminei meu romance com Antonio Fagundes




Depois de muitos meses de românticos assédios e tentativas, finalmente resolvi ceder ao Antonio Fagundes. Um pouco de amor e romance não me faria mal e, na minha idade, as oportunidades não costumam ser tão frequentes. Além de tudo, Antonio é um belo homem: o típico machão, sensível e romântico nas horas certas. Dono de uma elegância casual, a pequena barriga lhe cai bem, torna-o um homem comum, mas verdadeiro. Fosse ele atlético ou sofisticado e perderia seu charme, que vem exatamente da personalidade marcante, do porte levemente descuidado mas ao mesmo tempo firme. Antono é daqueles homens para quem mesmo chinelos velhos caem bem - a elegância lhe vem do olhar, da atitude.

Pois bem, estava resolvido: iria dar-me a essa loucura.

É bem como esperava: Antonio é um romântico-sensível. Ao falar, sua atenção é completamente concentrada no momento presente, seus olhos são penetrantes e ao mesmo tempo delineiam um mundo vasto escondido. Seus gestos são calmos, mas não estudados. Ao mesmo tempo, a firmeza de atitude revelam o homem forte e dominador sempre pronto a eclodir num momento de perigo. Que mulher não se sentiria atraída a um homem desses, meu Deus?

Antônio fala com doçura. Anos de palco e de set de filmagem fizeram dele um homem habilidoso com as palavras. Sabe muito, sabe o que agrada às mulheres e as faz sentir importantes, sabe ser inteligente sem ser pedante. Procuro ficar quieta, apenas bebendo o sabor agradável de suas palavras, deixando que o desejo se instale de maneira definitiva em minha mente.

À medida em que Antonio fala, também meu corpo reage ao momento. Antonio sabe como conduzir uma mulher com seu doce discurso, sem usar as mãos. A esta altura, porém, já preferia sentir um pouco mais de suas mãos em minha pele.

Antonio continua seu preâmbulo amoroso - vejo que aprendeu muito na escola da interpretação e realmente impressiona. Sou, porém, uma mulher comum, e a uma certa altura as palavras têm menor importância, a ação deve ceder lugar a elas. Mas parece que Antônio não se dá conta disso, tão absorvido pelo clima de romance shakespeariano que criou.

Fico um pouco impaciente e, literalmente, vou secando de amor. Antônio não percebe. Mas eu percebo que depois de uma certa idade, alguns homens começam a confundir desejo com realização. Melhor dizendo, muitas palavras, pouca ação.

E assim, à medida em que o tempo escoa e eu me canso, o meu despertador toca. É hora de retomar a vida, enfrentar a dura realidade e esquecer Antonio.


Texto: Bete Padoveze
Fotos: Gondoleiros, Grande Canal, Veneza (Bete Padoveze)


domingo, julho 02, 2006

Qualquer caminho serve




















Ao responder a um questionário, uma jovem intercambista coreana do Rotary disse que, entre os grandes problemas da juventude atual, um que considera muito preocupante é a apatia. Seria a apatia a causa (ou consequência?) do comportamento errático dos jovens de hoje, em todo o mundo. É a falta de perspectiva, de confiança no futuro - no seu próprio e no da humanidade – que faz com que não se dê muita importância ao papel que cada um deve representar na sua comunidade e no mundo.

Até onde consigo enxergar, esse não é um problema unicamente vinculado à idade - neste caso, à falta de. Mostrar-se ou ser apático, em qualquer idade ou lugar do mundo, é às vezes uma defesa contra a difícil arte de viver nele.

Saber o que fazer, como fazer, que caminho seguir na vida não é fácil. Felizes dos que logo, logo descobrem isso.

Quando Alice (lembram dela?), em seu estranho e maluco passeio pelo País das Maravilhas, pergunta ao Gato qual caminho ela deve seguir, ele responde perguntando aonde ela quer chegar. Alice responde que não importa muito e o Gato diz então que qualquer caminho serve.

É bem isso: se a gente não sabe pra onde vai, qualquer caminho serve... A metáfora do Gato de Alice tem sido muito usada para explicar a confusão de objetivos de nossos tempos. Dizemos que principalmente nossos jovens não sabem o que querem, por quê querem, e para onde irão. Parece difícil ser jovem hoje, quando a necessidade de sucesso pressiona para que se mantenham com aparência e mentalidade jovens, e paradoxalmente deles exige experiência e maturidade. Tudo isso a curto prazo... Enquanto isso, enquanto se perdem um pouco pelos caminhos que ainda não sabem escolher, a adolescência e a juventude vão se estendendo por anos e anos... (alguns morrem aos 80 ainda adolescentes e confusos).

A verdade é que os adultos também se perdem e ficam esperando que o Gato lhes dê uma resposta. Ilusão: a uma certa altura da vida, a resposta tem que estar dentro da gente mesmo, e, pior, não há muito mais tempo para se testar caminhos. A gente tem que seguir a intuição.

O Gato de Alice ainda piora a situação dizendo que, seguindo um ou outro caminho, ela
encontrará a Lebre ou o Chapeleiro, e ambos são malucos. E ela também é maluca, pois está ali. Ah, isso explica muita coisa!



Texto: Bete Padoveze (Maio 2005)
Foto: Estrada para o Cemitério do Campo (Lea Minshull 2003)
Foto: Estrada Rio das Pedras (Bete Padoveze 2010)

domingo, junho 25, 2006

Águas do coração


Pequenas pedras, pequenos detritos. Algumas folhas, ciscos de toda espécie. Poeira.


Uns vêm trazidos pela aragem leve e mansamente tocam a superfície. Submergem com leveza, qual uma dança.

Alguns caem do próprio ar, sequer perturbam a tranquilidade das águas.

Outros, porém, são trazidos ferozmente pela tempestade e agitam-nas com tal intensidade que até as partículas já acomodadas são revolvidas, provocando um grande rebuliço. Nessas ocasiões, toda a camada sedimentada no fundo se desprende, e a violência do vento chega a trazer à tona muitos desses detritos novamente.

São assim as águas do coração. Muitos problemas mal nos incomodam, porque são pequenos demais. Mas quando surgem dificuldades maiores, que perturbam realmente a nossa serenidade, os pequenos problemas também emergem, deixando transparecer amarguras guardadas. Desfaz-se o nosso equilíbrio e passamos a nos incomodar com coisas insignificantes.

É claro que, nessas horas, não conseguimos nos lembrar que a tempestade passa e também as grandes pedras vão ao fundo.

E, já que não podemos eliminar de vez o que nos perturba, resta protegermo-nos o quanto mais da tempestade, para que cause o menor dano possível.

14.07.82
Foto: Parque dos Ipês-SBO 2004 (Bete Padoveze
)

domingo, junho 18, 2006

Refúgio


É preciso que a gente, às vezes, se isole deste mundo louco.


É preciso que a gente tenha um cantinho, um oásis, um refúgio nessa angustiante aldeia de malucos.

É preciso um lugar onde a gente possa repousar e se abandonar, onde a gente possa gozar das coisas lindas que ainda existem, mas são raras. Onde se possa chorar de emoção livremente. Onde se possa ler um livro e penetrar inteiramente em seu cenário, como se dele fizesse parte. Onde se possa ouvir as músicas que a gente ama e sonhar, sonhar...

Um lugar aonde o mal não tenha acesso, aonde a violência não chegue. Um lugar onde o cheiro da felicidade, que hoje parece tão antigo, rescenda por todos os cantos.

Um lugar em que as paredes tenham vida e cada objeto tenha sua própria história. Um lugar onde cada pedacinho fale da gente e onde a liberdade passeie sem medo. Um lugar onde se possa estar nua. Onde se pode beber um copo d´água estalando os lábios de prazer.

Um lugar onde Deus não precisa pedir licença prá entrar.

Texto e foto: Bete Padoveze
19.08.82

sábado, maio 27, 2006

Meu amigo Waltinho



Meu amigo Waltinho faleceu há algumas semanas. Iria completar 80 anos em agosto, quando finalmente se retiraria do trabalho que exercia há várias décadas. Tradutor de inglês, dos bons, Waltinho ensinou-me muita coisa. A bem da verdade, foi a primeiro a instilar-me confiança para aprender e mostrar o que tinha aprendido. Devo muito a ele, principalmente pela disponibilidade e boa vontade com que sempre me atendia, mesmo quando trabalhávamos em empresas diferentes.

Filho de diplomata, tinha modos elegantes e paciência em todas as situações. Comportava-se como um gentleman. A mim (como às outras mulheres do seu círculo mais próximo) abraçava com um entusiasmo cheio de energia próprio dos homens jovens. Fazia a gente se sentir apreciada e bem vinda.

Tínhamos conversado no dia anterior, eu reclamando da falta que ele me faria. Quem mais me socorreria com tanta propriedade nas minhas dúvidas? Dois dias antes, tendo marcado com ele uma breve visita à sua sala, desmarquei na última hora, sempre muito atarefada. Não lhe dei meu último abraço, do que sinto uma tremenda falta.

Ensinando-me lições de inglês por tantos anos, Waltinho ainda me ensinou a sua última lição - a de que é possível sermos úteis até o fim e, através do nosso trabalho, deixarmos aos que nos cercam não apenas memórias voláteis, mas a marca indelével de quem ensinou, orientou, aconselhou. A sua lição está aqui, impressa de forma profunda e definitiva. Cabe a mim agora transmiti-la aos meus.

Foto e Texto: Bete Padoveze 27.05.06

segunda-feira, maio 01, 2006

Nada de novo


A vida parece ter nenhum sentido quando acordo, abro a janela e a perspectiva que vejo é a mesma do dia anterior. Planejo o meu dia e vejo as mesmas pessoas, tarefas e lugares - nada de novo.

Tudo tão antigo como eu mesma me sinto. A emoção de outrora dando lugar às necessidades de todos os dias - nada de novo.

Quando finalmente vou ceder aos meus sonhos? Quando vou descobrir maneiras novas de viver, já que a vida é tão breve e fugitiva?

Nos minutos de insensatez frente ao espelho, pesquiso novas fronteiras de vida. No entanto, mecanicamente repito os mesmos gestos de todos os dias - nada de novo. Apenas vejo uma face ligeiramente conhecida, com mudanças que não percebo.

Seria a vida tão difícil de saborear ou apenas eu não consigo entendê-la?

No caminho, vou descobrindo que as mesmas coisas que fiz ontem serão necessárias amanhã (e se a vida não for como nos meus sonhos? Será que me engano todos os dias?), e não há como ignorá-las.
Decido que as repetirei cada vez que for preciso, e na manhã seguinte, ao abrir as janelas, questionarei novamente as minhas decisões até aceitá-las. Sempre farei assim - nada de novo.

22/08/91
Foto: Bete Padoveze - Piracicaba - Rua do Porto, 2005

domingo, abril 30, 2006

Casa vazia



Chega de mansinho, levemente... Vem tímido, como se tivesse medo. Chega sem se deixar notar e encosta-se nas paredes para não ser visto. Mal ergue os olhos do chão, sem jeito como uma criança.

Aos poucos, consegue um lugarzinho e instala-se, mais seguro de si. Passeia o olhar pela casa, analisa, mede, raciocina. Depois levanta-se, olha com vagar pelos cantos, percebe as falhas, compreende os hábitos do dono, começa a entender sua vida.

Mais tarde pede um favor, aceita uma gentileza, torna-se agradável.

Depois pede mais. Tem sede. Tem fome. Quer ser agradado. Já não se pode lhe negar mais nada. Não é mais tão sorridente como na chegada, mas o dono se submete a ele, porque já tomou conta de tudo. Passa a ser o senhor. Pede muito. Exige demais. Não importa que faça chorar, que faça sofrer. Quer, apenas.

E o dono, agora escravo, sujeita-se na espera de um pequeno sorriso, de um aceno, de uma concessão.

E só muito tarde vai perceber que lhe ficou apenas uma casa vazia, assombrada de lembranças. Um coração solitário.


08.07.82
Foto: Casarão rua em Santos, 2001



sexta-feira, abril 21, 2006

Mistério




Há um vasto mundo
escondido
atrás da magia do teu olhar.

Há um denso mistério
oculto
na transparência dos teus olhos verdes.

Há uma doce ilusão
que teu olhar revela -
a ilusão do teu visível
e indevassável mistério.

Ah, quem dera derrubar
a barreira verde do teu olhar
e saltar no abismo profundo
da tua alma!

07.10.82
Foto: Bete Padoveze (MedCruise - maio2005)


 


sábado, abril 15, 2006

Velha esperança



Já é muito tarde. As luzes todas já se apagaram e eu fiquei ainda aqui sozinha, pensando, esperando.

Não há ruído algum - não os ouço. Ouço apenas o bater descompassado do meu coração intranquilo, apressado. Parece que não há vida nenhuma lá fora e, no entanto, há uma vida explodindo em mim. Há um quê de tristeza nessa escuridão, que me transporta e me faz voltar prá dentro, faz sentir o gosto ligeiramente amargo deste quietude.

No entanto, é bonito este silêncio. Não é vazio - ao contrário, este silêncio preenche o vazio todo e me reconforta. Este silêncio é concreto, pleno, é vivo!
-

























Ainda não consegui encadear os pensamentos e as horas, assim, demoram a passar. Tenho pressa de chegar ao desfecho e, aos tropeços, nada me parece claro. Preciso dormir. Quem sabe a manhã me traga luz nova...
-
Já ouço alguns ruídos. Já sinto acordar a mesma vida de todos os dias, o mesmo dia de todos os dias, o mesmo, igual, sempre.

Nasce porém em mim uma nova esperança. Ou é a mesma velha esperança, vestida de roupa nova...

31.08.82
Foto: Bete Padoveze (Dubrovnik, Croácia, 2005)

sexta-feira, abril 14, 2006

Doce saudade



Essa chuva fininha, esse cheiro de verde molhado, esse som dos pingos no telhado, despertou doces lembranças, trouxe um perfume, um sabor quase esquecido de dias felizes.

Horto Tupi, Piracicaba, 2002
É engraçado como essa saudade, acordada assim de repente, não dói. Creio que é porque retorna momentos intensamente aproveitados e dos quais não sobrou nenhum instante de arrependimento. Coisas que a gente viu, sentiu, viveu e que nos fizeram felizes.

Tem um gosto doce, esta saudade. Tem o mesmo cheiro puro dos dias que revive. Da chuva escorrendo nos vidros dos carros, das canções, das flores colhidas nos jardins, dos tombos na rua, das enxurradas. Sensações que o tempo não devolve, pois seria preciso nascer de novo para senti-las com a mesma pureza, com o mesmo sabor.


Trilhos Fepasa SBO, 2007

Um desses dias foi especial. Eu tinha dezesseis anos, tinha perdido o namorado e estava me sentindo muito triste. Por ocasião de um feriado, meu pai resolveu que iríamos pescar, como ele gostava de fazer sempre. Nós tínhamos um carro novo, desses que exalam cheirinho de coisa nova, que era nosso orgulho.

Os dias que antecederam o feriado foram de euforia e expectativa, como sempre. Gostávamos desses passeios e nos preparávamos com ansiedade.

No dia combinado, acordamos muito cedo para arrumar as coisas de que precisávamos. Já aí começava a festa. Prontos, instalamo-nos no carro: meu pai, minha mãe, quatro irmãos e eu, num fusca. Nem saímos da garagem e começou a chover. Meu pai parou e perguntou:

- Vamos assim mesmo ou ficamos?

Todos foram unânimes: fomos. E o que rimos, cantamos e brincamos superou a alegria dos demais passeios. Era gostoso ver a chuva fininha e a gente lá dentro, apertadinhos, aquecidos, unidos. Às vezes me dava um aperto no peito, quando me lembrava dele. Mas passava logo, logo.


Estrada volta Rio das Pedras, julho 2010
Chegamos ao local: descemos o barranco e ficamos o dia todo debaixo da ponte, pescando, apesar da chuva. Tínhamos pouco espaço a explorar e, por isso mesmo, dávamos mais atenção um ao outro. Não me lembro de nenhuma rusga, de nenhum momento negativo. Lembro, sim, que a volta foi deliciosa e chegamos em casa leves, felizes.

Alguns dias depois roubaram nosso carro. Isso nos trouxe dificuldades, mas passaram também.

Meu namorado também não voltou. Mas ficou a lembrança dele. Doce como esses dias de chuva...

Texto: Bete Padoveze (07.10.82)
Fotos: Bete Padoveze


Carta a meu pai



Passei pela janela aberta e vi seu vulto lá fora, se movimentando. Parei, olhei, e, de repente, percebi que quase não o conheço.

Quase não sei nada sobre você, pai. Sei apenas o que todos sabem. Sei do seu caráter retíssimo, do seu espírito livre, da sua calma e equilíbrio constantes. Sei dos seus gostos simples, do seus gestos tranqüilos, da sua alegria comedida. Conheço de você aquilo que muitos conhecem – sua vontade de trabalhar, sua determinação, seu bom humor, seu bom senso.


Não me lembro de vê-lo em momentos de ira, nem de saber que tomou decisões erradas em nosso nome. Sei que nas horas difíceis e cruciais de nossa vida você nunca se mostrou titubeante. Ao contrário, nessas horas é que você revelava toda a grandeza de que era constituído.

Mesmo quando ficava doente. Lembra aquela ferida na boca que não sarava? Exames, exames, ela melhorava; depois voltava. E você quieto, sempre quieto. Não nos deixava saber de sua preocupação. E nós a querer enxergar em seu rosto algum traço de desespero. Não havia. Você agüentava sempre qualquer situação.

Você sempre fazia algo por nós, pelos outros. Mas fazia sempre antes. E quando já não fosse possível fazer mais nada, você ainda era alguém com quem se podia contar.

Nunca vi você parado, pai. Nunca vi você se lastimando de sua vida, de seus problemas. Você não tinha tempo prá chorar – você trabalhava, você agia. E mesmo cansado, mesmo doente, você trabalhava, você agia.

Mas eu sei que não o conheço. Sei apenas que atrás de você tem uma história. Deve ser até triste, pois a vida sempre lhe reservou episódios doloridos. Deve ser a história de um homem que se moldou, que se construiu com firmeza e agora, depois de tantos anos, de muitos sacrifícios, pede muito pouco para si. Pede apenas uma vara de pescar e alguns minutos de paz.

26.08.82
(João Padoveze faleceu em 21 de agosto de 2002)

João Padoveze na casa da filha Marta

Janelas





















Abri uma janela. Abri, com dificuldade, uma pequena janela meio encrencada e velha, que me custou muito esforço. Há muito que venho tentando e as minhas mãos já estavam machucadas por isso. Mas não consigo descrever, nem vou esquecer jamais, a inebriante sensação de esperança que tive quando consegui movimentá-la. Valeu-me, esse sopro de futuro, todas as dificuldades.

Quando abri, devagarinho, aquela feia janela, que foi por tanto tempo a minha maior aspiração, não vi aquele dia ensolarado que esperava. Vi apenas um sol tímido e vacilante, medroso de romper a neblina da manhã. Mas havia sol e isso era bom! Havia sol e havia dia, havia sol e havia verde, havia sol e havia vida! Havia, em mim, a coragem que emprestei ao sol, que logo, logo, se tornou brilhante.

Por isso, amei aquele sol, um sol que a princípio temeu, mas depois ousou. Ousou mostrar toda a sua beleza e foi belo. Ousou se entregar à sua própria grandeza e foi grande.

-

Hoje abri mais uma janela. Custou-me menos e eu já não precisava ver o sol para enfrentar o dia. Bastava-me ver as coisas como elas relamente são, porque eu tinha suficiente coragem.

As minhas mãos continuavam doloridas do esforço anterior, mas havia nelas um orgulho das próprias dores, que só existe quando se faz tentativas.

Os meus olhos não esperavam um belo dia, porque já havia um sol interior. Os meus olhos viam com o coração, e este estava feliz da coragem que havia emprestado a outrem.

Meu coração vibrava mansamente, como quem já viveu e sofreu muito, mas ainda era um coração jovem.

-

Amanhã abrirei mais uma janela...



26.07.82
Foto: Bete Padoveze (2006 MedCruise)

terça-feira, abril 11, 2006

Bárbara


























Quase chego a vê-la, passinhos miúdos e rápidos, dedo na boca, olhos grandes e espertos, encostando de mansinho ao meu lado, na cama, à espera do abraço e do carinho de todos os dias. Quase chego a senti-la, o corpinho macio e cheiroso, atravessando a casa naquele jeitinho dengoso de menina sapeca. O corpinho delicado e firme, denotando, tão cedo, a mulher resoluta, alegre, carinhosa. Os pezinhos gordinhos, os dedos pequeninos. Miniatura de mulher. Criança com olhos de gente grande. Relembrar cada gesto, cada frase, cada momento, cada fase... Tanta vida em tão pouco tempo. Tanto amor. Tanta saudade, a reviver Bárbara todos os dias.

Seria amanhã (02/12), filhinha, que você viria novamente ao meu lado, esperando um outro abraço, e eu lhe diria “Feliz Aniversário”. Então todos juntos cantaríamos o “Parabéns a Você” e lhe daríamos nosso presente. Mas desta vez não vai dar. Fica pra outra vez, quando, um dia, a gente de novo de encontrar. Feliz aniversário, filhinha!

01/12/84

sábado, abril 08, 2006

À janela

 
























Caminhava apressadamente...

...imersa em planejamentos e situações virtuais, quando meu olhar mecanicamente detectou um movimento, uma sombra na janela aberta da casa antiga, rente à calçada. Também mecanicamente parei (a curiosidade é própria das mulheres e, em mim, meu melhor defeito).

Tudo quieto, apenas o dançar das cortinas se via. Com sentimentos de culpa pela intromissão na vida alheia, desviei o olhar, já a postos para retomar meu caminho. Foi o que fiz.

Subitamente, senti a mesma sensação de sombra, de movimento, talvez um certo calor. Diminui o passo e num espaço de segundos ponderei todas as razões – pró e contra – para voltar e olhar novamente. Ah, maldita curiosidade que me leva a atitudes impensadas. Soubesse eu aonde me levaria e jamais teria olhado, prestado atenção novamente...

Pela segunda vez nada vi. Mas louca não estava! É bem verdade que às vezes a esquisitice me acomete, os pensamentos se tornam criativos por demais e, mais que qualquer novelista da Vênus Platinada, crio enredos verdadeiramente mirabolantes. Porém, sem cacife e sem coragem, não concretizo minhas invenções. Pois bem, como disse, louca não estava e certamente havia algo naquela janela aberta rente à calçada que me interessava.

Fingi continuar, mas encostei-me às paredes e esgueirei-me por debaixo do peitoril para alcançar o outro lado, na tentativa de enganar quem quer que lá estivesse, a mangar de mim, inocente transeunte. Já criava (de volta a novelista) diálogos duros e moralistas para encher de vergonha o desocupado que estivera a me tocaiar. Fiz expressão séria de professorinha, que me custava manter. Pareceu-me uma eternidade o tempo que lá esperei – alguns segundos, e tornei-me tão impaciente quanto fico enquanto aguardo o meu pobre 486 responder aos comandos.

Um leve e cuidadoso ruído e então apareceu... Ele.

A casa era antiga e ele não era muito menos, mas os olhos miúdos e negros eram extremamente jovens, audaciosos e brilhantes.

Chamou-me. Fez perguntas. Como se tivesse me conhecido por toda a vida. Conseguiu um número de telefone. Aos poucos – a bem da verdade, muito rapidamente – entrou na minha vida.

E mais não conto, pois não posso. E se sentirem vontade de saber tudo o mais, volto a dizer: a curiosidade é terrível defeito! Em mim, o meu melhor....

Foto: Bete Padoveze (Casa do Povoador – Rio Piracicaba)
07/02/01

sexta-feira, abril 07, 2006

Pastel na Feira Livre


Você quer se divertir? Eu também. E quanto custa aproveitar a vida?

Num mundo em que tudo tem preço (e às vezes bem alto!), fazer algo prazeroso começa a se tornar difícil. E quanto maior o custo, maior o planejamento, maiores os cuidados para aproveitar ao máximo o valor envolvido. Viagens, idas ao shopping, ao cinema, jantares, teatros, passeios e noitadas demandam uma certa organização para que tudo corra como deve ser e que não reste aquela sensação residual incômoda, tipo “podia ser melhor pelo tanto que eu gastei”...

Pois é, às vezes divertir-se cansa! E estressa demais! Horas de espera, filas, trânsito, desencontros, decepções...

Mas nem tudo é assim. Tem gente que ainda consegue encontrar coisas mais simples para fazer, baratas e prazerosas. Há uma porção delas, acredite! E, veja, aqui mesmo, em Sbó. Eu sei que existem, também estou procurando encontrar todas... Como se diz que não há nada a se fazer em nossa não-tão-pequena-mas-um-tanto-provinciana cidade, fica aqui meu pedido e desafio para que o leitor me escreva dizendo o que gosta de fazer nas suas horas mais amenas.

Quer ver um exemplo? Aquela rapaziada que sai pela noite do sábado com amigos prá conversar, dançar, ficar nas avenidas, etc. - acabou a noite, acabou o gás, é hora de voltar prá casa dormir. Um pouco antes, a parada final - a feira livre. É claro que ninguém fará compras a esta hora, pois ninguém é de ferro – todos já estão cansados de se divertir. É apenas um pit-stop para recarregar até chegar em casa definitivamente. E, assim, uma paradinha na banca de pastel da feira livre dá aquela sensação de fim de tarefa, de satisfação, aquecendo o estômago para uma noite, digo, dia de sono. Aproveitando o momento, um caldo de cana tirado na hora acompanha o pastel quentinho, quentinho, e dá aquela sensação relaxante absolutamente indispensável. Dá tempo de jogar mais um pouco de conversa fora, diminuir o zunido na cabeça, chegar em casa mais inteiro.

Comer um pastel com caldo de cana na feira (ou com uma caçulinha, coisa nossa, de Sbó) é um dos costumes pitorescos que a cidade pequena exportou para as cidades grandes. Coisa boa, às 5 da manhã (ou mesmo antes, às 3, às 4), no fim da noitada, ou no começo do dia, para quem não é da noite. Uma festa depois da festa!


Foto: Lea Minshull (maio 2005)
Foto: Lea Minshull (maio 2005)
Como pano de fundo, o burburinho do início do trabalho na feira, gente montando barracas, pessoas chegando, o fechar da noite, o nascer do dia, meio-lua-meio-sol. A vida como ela é, sem muito brilho ou sofisticação, mas ainda assim charmosa pela sua autenticidade. O cheiro das frutas nas bancas, fácil de sentir ao passar pelas barracas. Charme e encanto ao alcance de todos – basta mudar um pouco os velhos hábitos, basta querer encontrar no simples o prazer muitas vezes tão difícil no complicado.

Depois, é só dormir e aproveitar o restinho do domingo.

Fotos: Lea Minshull
Texto: Bete Padoveze

Ipês


O frio traz seus encantos. Traz também mãos e pés gelados, e uma vontade inesgotável de hibernar. Dirceus, Genoínos, Valerios e agregados, numa sucessão de novos fatos que apenas repetem os velhos e conhecidos acontecimentos, aumentam o frio da estação – adicionam mais um banho gelado direto na cabeça, já meio entorpecida pela temperatura.   
Ipês na Avenida da Saudade

Quem sabe ao acordar na primavera a vida já terá melhorado.....
 
A cama é boa, mas a mente alerta: é preciso se mover, não ficar parado, a vida pede ação. O corpo reage contra, mas o velho hábito da luta vence o desejo do abandono ao ócio (como diz Domenico de Masi, o ócio pode ser criativo – acho que no mínimo cria o prazer de não fazer nada).
 
A caminhada pela avenida do cemitério Cabreúva aquece pés e mãos e clareia um pouco os pensamentos. Bom lugar para reflexões. Quem dera fosse assim o caminho do fim da vida: calmo e florido.
 
Quem sabe, na hora derradeira, quando a alma estiver se libertando do corpo, as borboletas amarelas do Gabriel Garcia Márquez cubram de poesia e colorido esse momento definitivo. Pensamentos funestos, mas a beleza e a quietude do lugar a eles induzem.



Ipê na Avenida da Saudade

Os ipês de SBO – amarelos vibrantes, brancos e rosas delicados, roxos magnificos contrastando com o iluminado céu azul – são um bom motivo para sair do aconchego e respirar o ar da cidade. Sem hora, sem compromisso, sem despesa.

Ipê na Avenida Tiradentes
Parece pouco, mas disso também é feita a vida, não apenas das coisas contáveis e mensuráveis.

Claro, as contáveis e mensuráveis também nos fazem felizes, e não são poucas. O número de filhos que temos – uma, duas, três.. ou mais boas razôes para vivermos. O número de anos em que vivemos com a pessoa amada. O número de dias em que amamos o nosso trabalho. As milhares de horas em que nos sentimos amados. A quantidade de minutos de duração do filme eletrizante que nos prendeu a uma outra realidade. O número de páginas do livro instigante que nos mostrou uma outra (realidade) ou nos abriu os olhos para a nossa própria. O número de ipês de Sbo, que ano após ano, inverno após inverno, saciam os nossos olhos com a beleza espontânea que tanto procuramos.


Ipê na Avenida Santa Bárbara

                                                                   ooooooooo

A esta altura, o inverno quase (ou já) passou, mas ainda uma ou outra cobertura arroxeada pode ser vista por aí. O que não acabou (e ainda perdura até a entrada da primavera) é a sucessão chocante de denúncias que maltratam o coração do cidadão brasileiro.


Ipê na Estação Cultural (antiga Fepasa)
Pois é, se eu tivesse hibernado e acordado somente na primavera, ao acordar certamente veria muito sol, muita luz, muito calor e o clima político do inverno infinitamente mais aquecido... As estações vão e voltam, mas no fim nada muda, tudo permanece o mesmo...
Ipê à margem do Ribeirão dos Toledos
Fotos: Bete Padoveze (Av. Saudade/SBO-maio2005)
Texto: Bete Padoveze